Camuflagem para Descansos
Pesquisa de longa duração 2020–
A inércia, preguiça, improdutividade e lentidão, entre outros estereótipos, são frequentemente associados à gordura. No entanto, apesar dessas palavras que sugerem falta de movimento, não podemos afirmar que o corpo gordo desfruta de descanso pleno. Pelo contrário, essas corporeidades são frequentemente alvo de diversas formas de violência que, como uma lâmina afiada, destroem qualquer chance de paz. O mundo, como o conhecemos, não oferece oportunidades para desfrutar de tranquilidade. Dessa forma, corpos volumosos, especialmente quando racializados, vivem constantemente em estado de alerta.
A pesquisadora Josie Roland Hodson, em seu artigo "Rest Notes: On Black Sleep Aesthetics", argumenta que pessoas negras enfrentam desafios significativos em relação ao sono, em comparação com pessoas brancas, e sofrem com problemas de saúde mais graves devido ao racismo sistêmico. No contexto brasileiro, por exemplo, além das conclusões de Hodson, podemos considerar como o estigma de preguiçosos foi atribuído aos povos indígenas, sendo inclusive utilizado para justificar a escravização de africanos, tidos como mais aptos ao trabalho físico. As missões jesuíticas foram fundamentais para a construção desse imaginário, uma vez que justificavam a colonização como convocação divina para a salvação. Sendo assim, aos povos indígenas seria oferecida a salvação e, consequentemente, a sua proteção.
Outro fator determinante para esse estigma é como esses povos ajustavam seu próprio ritmo interno ao tempo da natureza: eram comuns os momentos de descanso, em uma lógica abundante em que não havia o pensamento de produzir para acumular. Dessa maneira, quer sejam os povos indígenas, quer sejam os africanos escravizados, deitar-se ou não fazer "nada" é um gesto que se torna perigoso diante daqueles que roubam e dominam. Perigo que segue ameaçando a lógica capitalista contemporânea que monetiza o tempo e, consequentemente, o descanso.
Com base nisso, desenvolvo a pesquisa de longa duração “Camuflagem para descansos”, que surge em 2020, inspirada na vivência e observação de corpos gordos que, devido à proeminente barriga, ao se deitarem horizontalmente, se acobertam como grandes pedras, montanhas, vulcões e ondas do mar. Compreendo a camuflagem como um método performativo de desaparição e aparição que viabiliza a esse corpo — que vive em um limbo entre a invisibilidade severa em consequência de uma visibilidade extrema — a capacidade de confundir e transtornar tudo aquilo que re/produz em intensa exaustão à sua existência. Além disso, há o ódio que não deve ser reduzido às questões estéticas e de saúde, pois quando analisamos a gordura por uma lente crítica, desvelamos um contexto racista.
Esse processo se elabora através da prática de desenhos em pequena escala no papel e no digital, bem como na criação de animações em loop e textos, pois, atualmente, eu trabalho em deslocamento e no meu quarto – espaço muitas vezes inóspito para experimentação devido ao seu tamanho limitado e às interrupções familiares, agravadas pela precariedade financeira que dificulta a aquisição dos materiais necessários. Consequentemente, a materialidade desta investigação não corresponde consistentemente ao seu verdadeiro potencial, levando-me a procurar alternativas como o desenho digital ou formatos físicos menores em papel mais barato e de qualidade inferior.
Atualmente, por meio do que chamo de "Treinamento Coreográfico do Descanso”, desenho paisagens de descanso ao longo de vários dias, dedicando períodos tanto à dedicação contínua quanto a interrupções. Durante esse procedimento, concentro-me nos gestos, sensações, intuições e palavras que emergem durante a criação. Indago se podemos conceber paisagens onde o descanso e a vitalidade sejam possíveis para corpos fronteiriços. Quais energias nos atravessariam enquanto descansamos? Quem zelaria por nós enquanto sonhamos com a liberdade? Como seria descansar de maneira ondulada, espiralada, espraiada? Como isso se daria por meio do desenho?
Essas questões guiam minha investigação, inclusive ao imaginar paisagens que desafiam as limitações impostas pela cidade que, conforme discutido pelo pensador quilombola Nego Bispo, são cosmofóbicas. Isto é, territórios que, por serem moldados no antropocentrismo, excluem todas as outras possibilidades de vidas. A investigação revisita a potencialidade das coreografias do corpo comprometido com a perspetiva de não-separação do mundo (viver-com seres minerais, aquáticos, vegetais, entre outros) — uma visão que contrasta com a perspectiva antropocêntrica e o projeto corporal ocidental que nos foi imposto.
Assim, almejo acessar o espaço-entre onde essas vidas, frequentemente ameaçadas e invadidas, podem encontrar, ainda que efemeramente, liberdade, mesmo nos espaços permeados pelo tempo colonial. Por fim, "Camuflagem para Descansos" é uma prática que se concentra no desejo de experimentar diversos materiais, formatos e gestos, visando conceber paisagens especulativas que abordem o descanso, o cuidado e a beleza terrível.
Camouflage for Resting
Long-term research 2020-
Inertia, laziness, unproductivity, and slowness, among other stereotypes, are often associated with fatness. However, despite these words suggesting a lack of movement, we cannot claim that the fat body enjoys complete rest. On the contrary, these corporealities are frequently the target of various forms of violence that, like a sharp blade, destroy any chance of peace. The world, as we know it, does not offer opportunities to enjoy tranquillity. Thus, voluminous bodies, especially when racialized, constantly live in a state of alertness.
Josie Roland Hodson, in her article “Rest Notes: On Black Sleep Aesthetics”, argues that black people face significant challenges related to sleep compared to white people and suffer from more severe health issues due to systemic racism. In the Brazilian context, for example, in addition to Hodson's conclusions, we can consider how the stigma of laziness was attributed to Indigenous peoples, even used to justify the enslavement of African peoples, deemed more suitable for physical labour. Jesuit missions were instrumental in constructing this imagery, as they justified colonization as a divine call for salvation. Thus, Indigenous peoples would be offered salvation and, consequently, protection.
Another determining factor for this stigma is how these people adjusted their internal rhythm to the natural time: moments of rest were common in an abundant logic where there was no thought of producing to accumulate. Thus, whether Indigenous peoples or enslaved African peoples, lying down or doing “nothing” is a gesture that becomes dangerous in the eyes of those who steal and dominate. Danger continues to threaten contemporary capitalist logic that monetizes time and, consequently, rest.
Based on this, I am conducting a long-term artistic research project called “Camuflagem para Descansos” (Camouflage for Resting), which began in 2020. The project is inspired by the experience and observation of fat bodies that, due to their prominent belly, when lying horizontally, camouflage themselves as large stones, mountains, volcanoes, and ocean waves. I understand camouflage as a performative method of disappearance and appearance which allows this body the ability to confuse and disrupt everything that re/produces intense exhaustion to its existence. Normally, the fat body lives in a limbo between severe invisibility and extreme visibility. Furthermore, there is hatred that should not be reduced to aesthetic and health issues because when we analyse fatness through a critical lens, we unveil a racist context.
This process develops through small-scale drawings on paper and digitally, as well as the creation of texts and looping animations. Currently, I work in displacement and my room — a place often inhospitable for art experimentation due to its limited size and family interruptions, being exacerbated by financial precariousness that hampers acquiring necessary materials. Consequently, the materiality of this research does not consistently correspond to its true potential, leading me to seek alternatives such as digital drawing or smaller physical formats on cheaper and lower-quality paper.
Nowadays, through what II call “Treinamento Coreográfico do Descanso” (Rest Choreographic Training), I draw landscapes of resting over several days, dedicating periods to both continuous focus and interruptions. Throughout this process, I focus on the gestures, sensations, intuitions, and words that emerge during creation. I inquire whether we can conceive landscapes where rest and vitality are possible for bordering bodies. What energies would traverse us while we rest? Who would safeguard us while we dream of freedom? What would it be like to rest in undulating, spiralling, spreading ways? How would this happen through drawing?
These questions guide my investigation, including when imagining landscapes that defy the limitations imposed by the city which, as discussed by quilombola thinker Nego Bispo, are cosmofóbicas (i). That is, territories moulded by anthropocentrism that exclude all other possibilities of life. The research revisits the potentiality of choreographies committed to the perspective of non-separation from the world (living with mineral, aquatic, and plant beings, among others). This vision contrasts with the anthropocentric perspective and the Western bodily project imposed on us.
Thus, I aim to access the in-between space where these lives, often threatened and invaded, can find, even fleetingly, freedom, even in spaces permeated by colonial temporality. Lastly, “Camuflagem para Descansos” (Camouflage for Resting) is a practice focused on the desire to experiment with various materials, formats, and gestures, aiming to conceive speculative landscapes that address rest, care, and terrible beauty.
(i) In the book “A Terra Dá, a Terra Quer” (The Earth Gives, the Earth Wants), Nego Bispo presents cosmophobia as the fear of the sacred and the cosmos. That is, the creating the perception of isolation in the world, hindering the establishment of meaningful connections with other communities and with nature. Bispo argues that cities are designed for humans, constituting artificial and synthetic territories, unlike forests, indigenous villages, and quilombos, which represent organic territories where lives are not segregated or hierarchically classified.